Faleceu naquele dia. Estendido, inerte no leito que o viu
nascer. Ali aprendeu a rezar, a orar a seu Deus e nunca mais esqueceu. Fazia-o
todas as noites, todas as manhãs. Naquela manhã não o fez. Abertas as portas,
foi recebido de braços abertos. Passou a orar directamente com quem sempre o
tinha escutado, com quem sempre desabafou. Sua presença nas horas difíceis, sua
alegria todos os dias.
Faleceu naquele dia. No leito, onde aprendeu a sonhar. Onde
príncipe em cavalo alado conquistava princesa e defendia-a de dragões,
monstros, vilões. Onde pilotava carros de corrida e subia ao lugar mais alto do
pódio. Onde marcava golos que outros falhavam, dando vitórias à sua equipa e
tornando-se no melhor marcador. E era tão simples. Bastava fechar os olhos.
Faleceu naquele dia. No leito onde fez amor pela primeira
vez e onde só deitara uma mulher – a sua mulher. Soube o que era o amor, a
paixão. Ali fez os filhos que hoje choram a seus pés. E que trazem os netos que
vêem seu avô dormir profundamente. E à noite o vão ver, todas as noites irão
olhar para o céu e ver duas estrelas brilhar – avô e avó estarão juntos outra
vez.
Faleceu naquele dia. No leito onde tudo projectou, menos sua
morte, sua partida. A empresa que criou, os telefonemas que recebeu a altas
horas, os papeis que lia, textos que escrevia. As obras que fez em casa, que já
tinha sido de seus pais. As plantas que plantara no quintal, que cresceram e
hoje secaram. As viagens de trabalho, lazer e férias. A última escapou, não
fora planeada.
Faleceu naquele dia. No leito onde aprendeu o significado de
todos os sentimentos. Onde sorria e chorava, dissertava e cantava… Onde vira
sua mulher partir, sem se despedir, sem o deixar ir com ela. Num dia em que o
céu não viu o Sol brilhar e as trevas vieram para ficar.
Faleceu naquele dia, no leito de sua vida, sozinho,
solitário, sem a presença que o fazia respirar, alimentar seu fado. Coração
destroçado, mil porquês sem resposta, perguntas sem destinatário.
Faleceu naquele dia, no leito confessionário de uma vida,
onde falava e discutia com seu Deus. E com seu Deus partira calmamente,
sossegado, em Paz, sem medo.
Faleceu naquele dia… E naquele mesmo dia, nasceu novamente,
nos braços de uma mãe carinhosa, afectuosa, mimando sua cria, no leito de nova
Vida.
Sem comentários:
Enviar um comentário