quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Todo o tempo do mundo

Olhou-se ao espelho após um banho de imersão.
Arranjou-se, como fosse para a festa. O encontro assim o exigia. Não podia apresentar-se com aquele ar pálido com que andava. Pegou no pincel e passou pó de arroz pelo rosto. A face, agora, tinha novo aspecto. Escolheu o batom melhor para a ocasião. Rosa claro. Não gostava de cores muito fortes. Rímel nas pestanas e sombra nos olhos. Apesar de maquilhada, estava sóbria, nada exagerada. Até porque não sabia bem o que iria encontrar. Rugas escondidas, parecendo outra pessoa mirando-se ao espelho. E ao espelho sorria levemente, deixando cair uma lágrima.
Experimentou cada um, como se tivesse todo o tempo do mundo. O vermelho que um dia alguém lhe ofereceu numa viagem pela Europa. Assentava-lhe muito bem, mas seria cor demasiado viva para a ocasião. Com esta desculpa colocou-o de lado, longe das recordações que lhe lembrava, pegando rapidamente no preto. Cada vestido, tinha uma história, rasgos na memória. Chegaram-lhe a dizer que era a mais bela naquela passagem de ano, mas também servira, anos depois, para fazer luto de sua mãe, tal era a simplicidade do vestido, mas também sua beleza. Não estava, nem queria estar de luto naquele momento que queria especial. Olhou pela janela onde Sol brilhava e os pássaros cantavam. A Primavera fez-lhe lembrar o vestido estampado que ficara no roupeiro. Já não experimentou o rosa estendido na cama esperando seu corpo entrar nele. Tons azulados como o céu apresentado nesse dia. Seria perfeito – pensou ela, sem querer experimentar mais nenhum. Dirigiu-se até à sapateira. Duvida existencial de qualquer mulher – salto raso ou salto alto!? O taco alto podia a fazer mais elegante, mas escolheu o raso. O caminho poderia ser longo, mais longo que o imaginário.
Não saiu de casa, sem antes colocar um lenço à volta do pescoço e pela última vez, olhou-se ao espelho. Como estava bonita. Nunca se tinha arranjado tão bem – tinha essa convicção. Até o cabelo, que para estar penteado teria de estar despenteado, conseguiu arranjar forma de o “armar”.
Colocou o carro a trabalhar e dirigiu-se ao local combinado. Olhou para o tablier e viu as horas. Ainda tinha tempo. Continuava com todo o tempo do mundo à sua frente.
Seguiu pela marginal, olhando o rio, onde veleiros competiam em regata. Mais adiante, na gare, um navio cruzeiro, onde centenas de mãos acenavam, despedindo-se de sua cidade. Aquele acto, não lhe passava ao lado. Tentou controlar a emoção, não conseguindo evitar que seus olhos ficassem “nublados”. E respirou fundo…
Subiu a colina, que lhe daria acesso à ponte. Os nervos começavam a tomar conta à medida que se aproximava do destino por si pré-definido.
Nunca fez tão poucos quilómetros em tanto tempo. Chegou a ouvir buzinadelas. Chegou a ser xingada. Nada fazia mudar sua condução. A velocidade não estava a ser cumprida no limite mínimo. O pé direito parecia não querer chegar ao destino.
Parou o carro no cimo do tabuleiro, lágrimas escorrendo pela cara, borrando pintura que tinha sido feita com tanto esmero. Havia chegado ao local. Dirigiu-se à bagageira e tirou o saco que havia posto, quando saiu de casa. O caminho podia ser longo, mas no momento crucial, tinha de estar elegante. A vaidade levou-a a levar os sapatos de salto alto. Calçou-os… Ouvindo sirenes à distância encaminhou-se apressada para a berma. Sentiu seus pés presos, como se a tivessem a agarrar. Chorando copiosamente não conseguiu lutar… Viu então, que os saltos, se prendiam no tabuleiro. Fez-se luz… Levou “aquilo” como um sinal. Sua vaidade tinha-a salvo de uma queda vertiginosa sem volta. Voltou a calçar os sapatos rasos, entrou no carro, ligou o rádio e seguiu viagem. Desviando o olhar à esquerda, pareceu-lhe ver Cristo-Rei piscar-lhe o olho e abraçando seu destino. Agradecendo-Lhe, sorriu… Percebendo que aquilo que queremos encontrar, nem sempre é o que precisamos. E todo o tempo do mundo, passou a ser… tão curto.